Registro de Drácula (Tiago Araripe/Décio Pignatari), em vídeo feito por Dalvinha Costa com única foto de uma performance do irmão Paulo Costta e Tiago, em show do grupo Papa Poluição.
Numa tarde quente de 1975, entrei pela primeira vez no belíssimo Teatro Municipal de São Paulo para o ensaio geral do Festival Abertura. Como o nome prometia, o evento da Rede Globo tentava retomar a era dos festivais, abrindo portas a novos talentos da música brasileira.
Na empolgação dos meus 24 anos, o ensaio foi dos mais promissores. Não era para menos.
Eu estava num palco nobre, cantando com grande orquestra uma música impactante, embalada por brilhante arranjo de Mauro Giorgetti (irmão do cineasta Ugo) e concorrendo com artistas que viriam a consolidar as suas carreiras nos anos seguintes, entre eles Walter Franco, Djavan, Gonzaguinha, Ednardo, Alceu Valença, Luiz Melodia, Osvaldo Montenegro, Hermeto Paschoal e Leci Brandão.
Defenderia uma parceria com Décio Pignatari, o que, em si, era uma novidade na trajetória do poeta - e uma curiosidade para seus admiradores e a imprensa especializada.
Na plateia, após me ouvirem interpretar Drácula, alguns jornalistas expressaram de viva voz opiniões positivas a respeito daquela estranha composição. Era um tango que abria novo caminho, ao não seguir nem a vertente tradicional de Carlos Gardel nem a linha jazzística de Astor Piazzola, como comentaria depois um crítico n'O Estado de São Paulo.
Mas por que um tango? Cerca de dois anos antes, então trabalhando e dividindo palcos com Tom Zé, este me deu um punhado de letras de Décio, seu vizinho no bairro paulistano das Perdizes. Foi como se me desafiasse a musicá-las, pois eram poemas extensos, misto de drama e humor, feitos com o pensamento de se tornarem canções. Aceitei o desafio. Na época, eu ficava horas ao violão descobrindo complexas harmonias, mesmo sem nenhuma formação musical. E, de cara, as letras de Décio me soaram como tangos, embora minha vivência no gênero tivesse sido meramente de ouvi-lo de passagem, aqui e ali.
Assim surgiram Drácula e Teu Coração Bate, o Meu Apanha (que eu viria a gravar com Tom Zé, um ano antes do Abertura).
Retomando a narrativa, eu estava muito animado quando deixei o Teatro Municipal naquela noite, véspera do início do Festival. Vestido com roupa leve de verão, fui surpreendido por uma inversão climática típica de São Paulo. Diante do frio inesperado com que me deparei, chamei um táxi e rumei pra minha casa - um sobradinho de fundos na Vila Madalena.
Na manhã seguinte, ainda embalado pelo clima estimulante do ensaio geral, vi meu sonho começar a se tornar pesadelo. Quando experimentei falar, estava afônico.
Dali em diante, viveria momentos de suspense capazes de, como cantaria mais tarde num rock, deixar Hitchcock encabulado.
A primeira solução que me passou pela cabeça foi pedir à direção do Festival minha substituição por Paulo Costta, que conhecia bem a música e sabia cantá-la. Mas Paulinho também havia sido classificado no Abertura, onde defenderia com José Luiz Penna a canção Muzenza, de autoria de ambos (pouco tempo depois, nós três formaríamos o grupo Papa Poluição, juntamente com Xico Carlos, Beto Carrera e Bill Soares).
Meu pedido foi prontamente recusado.
A Rede Globo já havia assimilado a interpretação performática que eu dera ao tango, vestido de vampiro como mandava o figurino, sem faltar a indefectível capa preta. Então a imagem prevaleceu à voz.
Iniciou-se uma movimentação nos bastidores do Festival, de pessoas querendo auxiliar de alguma forma. Uma das juradas, a grande e saudosa cantora Madalena de Paula, também professora de fonoaudiologia, me prescreveu alguns exercícios vocais. Se não me falha a memória, fizeram também chegar a mim alguma beberagem quente, "ótima pra garganta". E do seu camarim, Caetano Veloso, que faria o show da noite, pediu a alguém que fosse me ensinar uma posição de Yoga recomendada para melhorar a voz - a posição do Leão, se não me engano.
Claro, eu tentava todos aqueles recursos, um tanto quanto atabalhoadamente, mas nada adiantou. No momento decisivo, entrei em cena e fiz o melhor possível dadas as circunstâncias. Mais gesticulava do que cantava. No dia seguinte, um executivo da Odeon, gravadora com a qual eu tinha contrato, comentou algo sobre os meus "guinchos de vampiro".
Drácula não ficou entre as finalistas e eu estava tentando me conformar com o aspecto anedótico da situação. Mas, sentido-me prejudicado, pedi uma reabilitação à Globo.
Nesse meio tempo, aconteceu a gravação de um dos álbuns do Festival (Abertura: Estes Também Participaram) na RCA Victor. Devido ao contrato que eu assinara com a Odeon, a gravadora não me liberou para interpretar a parceria com Décio Pignatari no disco da concorrente. Pedi a Paulo Costta que a cantasse e este é o registro que se ouve no vídeo de Dalvinha.
Um dia, inesperadamente, alguém bateu palmas à entrada de casa. Era um rapaz que se apresentou como sendo da Rede Globo. Viera me convidar para uma participação no Fantástico. Havia inclusive um cachê e justo quando eu estava numa dureza franciscana. Mas era muito metido a besta e não quis dar o braço a torcer. "Vou pensar e depois dou uma resposta", foi o que disse ao emissário global.
Dias depois, estava gravando para o Fantástico nos porões do Teatro Municipal. O objetivo da Globo era fazer um quadro mostrando dois extremos do Festival: a música mais popular e a sua antítese "maldita". A primeira, Farofa-fá, composta e interpretada por Mauro Celso. A outra, como você já deve ter deduzido, o tango Drácula.
Dessa vez, voz já reabilitada, tudo funcionou direitinho e pude cantar a música como se deve. Os guinchos de vampiro já não me assombravam mais.
Principais resultados do Festival Abertura:
1º lugar: Como um ladrão (Carlinhos Vergueiro), interpretada pelo autor;
2º lugar: Fato consumado (Djavan), interpretada pelo autor;
3º lugar: Muito tudo (Walter Franco), interpretada pelo autor.
Melhor Arranjo: Hermeto Paschoal (Porco na festa, de Hermeto Paschoal)
Melhor Intérprete: Clementina de Jesus (A morte de Chico Preto, de Geraldo Filme de Souza)
Alceu Valença ganhou um prêmio especial de "pesquisa" pela apresentação de Vou danado pra Catende, que cantou acompanhado por Zé Ramalho e Lula Côrtes.
Dois artistas me chamaram a atenção por não se dobrarem às exigências da Rede Globo. A Hermeto Paschoal, queriam demover da ideia de levar um porco vivo para a apresentação do artista. Hermeto bateu pé: ou fazia o seu número com o porco ou não participaria do Festival. Afinal, os guinchos do animal faziam parte da música. A Globo teve que engolir o porco.
O outro foi o impagável Tim Maia, convidado para o show de uma das noites e no auge da devoção à religião Cultura Racional. Todo vestido de branco, ele balançava o livro Universo em Desencanto diante das câmaras, enquanto entoava com seu vozeirão: "Uh, uh, uh, que beleza!" Ah, mas de acordo com a tecnologia televisiva da época, o branco era um problema. Estourava a imagem, ou algo assim. Não podia. Tim teria que trocar de roupa. Mais fácil seria trocar de artista: Tim Maia não abriu mão da roupa branca nem pro trem. Cantou de branco. "Que bonito é sentir a natureza", entoou. Que bonito é se fazer respeitar, pensei com meus botões.
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