Instante captado, por celular (ou telemóvel, como dizem em Portugal), na Praia da Consolação.
Há algum tempo, a auto-observação tem sido fundamental para me conhecer melhor. Uma das formas de praticá-la é escrever. Durante muitos anos, mantive um registro sistemático de sonhos. Quando, por descuido, deletei um arquivo que continha volume considerável desses registros, interrompi o hábito. Este ano, no entanto, voltei à prática. Fui motivado por um curso virtual de Sonhos Lúcidos conduzido, durante o período de isolamento social, por Victoria Marcos de la Fuente e do qual participei com Ana Ruth e algumas pessoas da Espanha.
Quase diariamente, com base em anotações feitas durante a madrugada em um bloco de rascunhos, preencho meu caderno de sonhos. Quanto mais os anoto, como primeira atividade do dia, melhor consigo memorizá-los. Cada sonho recebe título e, sempre que possível, o horário em que aconteceu. Periodicamente, faço uma leitura geral das anotações, destacando os aspectos mais relevantes. Algumas vezes, percebo situações internas superadas conforme o comportamento que tenho durante o ato de sonhar. Em outras, descubro conteúdos internos que passam a requerer mais da minha atenção.
Não por acaso, a maioria dos sonhos dizem respeito a assuntos relacionados à música. E algumas composições foram originadas enquanto eu sonhava.
Recentemente, abrindo caixas de papeis deixados em Fortaleza, nossos filhos que ali moram descobriram o texto que divulgo a seguir. Foi escrito por solicitação de algum facilitador de curso ou terapeuta, durante atividade de que participei e da qual já não lembro. Mostra o estado interior em que eu me encontrava aos 35 anos, morando em São Paulo.
Auto-retrato sem moldura
Penso: uma pessoa, para se olhar nos olhos, não precisa de espelhos. No entanto, ainda faço uso deles.
Adolescente, imaginei que um homem aos 35 anos seria algo monolítico.
Nesse patamar da vida, sinto-me ainda fragmentado.
Tenho dolorosa sensação dos meus limites. Mas idealizo-me livre, procurando conquistar a condição de voar.
Careço de paciência, entre outras coisas.
Experimentei 13 anos de casado, distribuídos em dois casamentos. O segundo resultou em Joana e Clarissa, agora com 7 e 3 anos. Vivo, assim, entre mulheres. Um desafio.
Nasci no sul do Ceará, no Crato. Tive educação machista. Às vezes, como em fuga, penso que encontrarei a terceira e definitiva companheira. Enquanto isso, luto.
Coordeno a redação de editora nova, mas que se tornou a maior do país em termos de listas telefônicas. Uma vertigem. Tenho a tarefa de editar este mês 17 listas. Acredito que é um recorde.
Dizem que o centro do furacão é calmo. Procuro chegar lá.
Aprecio a filosofia Zen, presente nas minhas práticas de Aikido e natação. Aikidoísta há quase três agostos, sou discípulo de Kawai Sensei. Nado sob instrução de Sato Sensei, 87 anos, em manhãs de água gelada. Estes dois japoneses me aproximam da cultura oriental, e de mim mesmo. Sou-lhes grato por isso.
Acredito na reencarnação. A espiritualidade é o caminho natural do ser humano em busca de si mesmo. Chegar ao uno é chegar ao todo. O espírito triunfará sobre a matéria.
Voltando aos espelhos, tive heróis. Dois deles, Jean-Paul Sartre e John Lennon, marcaram uma geração.
Desde cedo, fui ligado nas palavras. Devorava livros, escrevia contos.
Cinco anos como revisor de textos reverteram esse apetite. Passei a achar insuportável ler além do expediente. Venho me curando aos poucos de tamanha inapetência.
Falo pouco. Sou compositor e poeta em recesso indefinido. Gravei discos, fiz música para cinema e cantei em muitos palcos, em 12 ativos anos.
Hoje componho basicamente em engarrafamentos de trânsito. Mas prometo a mim mesmo: um dia retomarei o fio da meada.
Admiro o bom humor. A severidade comigo mesmo trava-me a alegria.
Mas quero/necessito rejuvenescer. Creio que a fonte da juventude consiste na verdadeira descoberta da maturidade. Lembro de Nelson Rodrigues, que dizia: "Jovens, envelheçam pelo amor de Deus".
Tive os cabelos longos durante 12 anos. Período cabeludo, eu diria.
Fumei uma quantidade (ir)razoável de maconha e fui praticamente alcoólatra. Há oito verões parei com tais artifícios. Outro existem, porém, eu sei. Mas como são sutis. Não é com qualquer rede de caçar borboletas que irei capturá-los.
Sou do signo de Leão, com Escorpião como ascendente,
Trato-me pela homeopatia unicista, e meu remédio base no momento é phosphorus. Dizem ser medicação para aqueles que têm medo. Ah, indisfarçável timidez.
Mas vou em frente. Quero conhecer o amor. E continuar a cantar.
Tiago Araripe
São Paulo, 28/abril/87
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